quinta-feira, agosto 03, 2006

RUA ENVENENADA


- Sabe o cachorro da Dona Maria? Morreu. Anteontem!
- Ai! Como? De quê?
- Envenenado.

A vizinhança era tranqüila. Exemplar, até. Ruazinha de dar inveja. Pátios sem grandes grades, apenas cercas baixas e bem pintadas. As árvores nos dois lados da rua serviam como traves para as peladas diárias da turma do João. Ricardo, Zeca, Caio, Juca e João, o time da rua. O outro time era o da outra rua. As duas equipes viviam a disputar qualquer negócio. Não era só futebol, não. Bolita, corrida de bicicleta também. Só ficavam do mesmo lado quando a Jurema aparecia. A misteriosa velha sem rua. Não existia um dia certo para suas aparições. Cabelos curtos e grisalhos, preso com uma meia dúzia de grampos. Para os dias mais frios, pouca roupa, aliás, a única. Uma calça moletom preta com um furo no joelho esquerdo e uma camiseta estampada. Como fiel companheiro, o seu olhar melancólico e o par de velhas botas. Não fazia o tipo assustadora, mas botava medo naqueles guris. Não raro, quando a turma teimava em guardar a pelota e ir para a casa tomar banho, uma das insistentes mães gritava: “Aé? Olha que a véia sem rua vem aí!”. Na hora a gurizada acabava o jogo. Advertência que servia também para os guris da outra rua.

O único que há pouco tempo passara a não mais se importar com os amedrontamentos era João. Na primeira, e última vez, que levou sua bola de couro, tinindo de nova para jogar, o Zeca fez bobagem. Brigou com o Joel, o guri mais velho e com pinta de forte da outra rua. O gorducho deu um chutão na bola e lançou-a na esquina, no pátio da Dona Maria. João nem se deteve em pedir ao Zeca para ir pegar a bola. Assim que ela saiu da ponta do pé do Joel ele acompanhou-a com o olhar e seguiu correndo para pegá-la, antes que o cachorro da vizinha destruísse a sua bola nova. Mais rápido que a corrida foi o pulo de João. Saltou a cerca, antes que a rabugenta Dona Maria o visse. Retornou à rua pelo fresta entre a cerca e o chão. “Imagina se a Maria Gorda descobre! Hehe!”- pensou com um sorriso sacana de quem havia aprontado mais uma. Ao dobrar a esquina, seu sorriso se desfez e qualquer pensamento foi apagado. Mal conseguia respirar. O olhar do João parou de brilhar quando se encontrou com o da Jurema Sem Rua. Foram dez segundos de pânico. Engoliu seco e desviou logo daquela velha. Voltou apavorado. Tratou de respirar fundo, ficar calmo e foi logo contando sua proeza aos demais guris. Escapara das garras da velha, da Dona Maria e da Jurema. Claro, sem dizer que ficara apavorado.

Isso já fazia mais de dois meses e, depois disso, João nunca mais sentiu medo da Jurema. Das poucas vezes em que a turma teve a surpresa de vê-la, os dois trocaram cúmplices olhares. João chegou a dizer para os outros guris um dia, sem muito pensar: “Deixem ela! É apenas uma mendiga!”. Mas fora isso, a vida na rua seguia calma e pacata. Famílias felizes, fofocas além das cercas, aposentados descansando em paz. Pelo menos até o dia do primeiro envenenamento. Dali uma semana, o segundo.

- E a gata do Seu João?
- Ah não!
- Sim, morreu envenenada também.
- Pobres bichanos! Como alguém pôde fazer isso? Que horror! Mas e aí? Tem suspeita do crápula que fez isso?

João não gostava muito das conversas entre a sua mãe e a mãe de Zeca. As duas levavam a fama de fofoqueiras da vizinhança, o que não deixava o guri muito a vontade. O que já não parecia incomodar muito o amigo. Zeca era conhecido como fuxiqueiro. Sempre queria fazer intriga na turma. Fazia quase 40º naquela tarde de sábado. O calor era tanto que os guris da outra rua não quiseram jogar. Os outros três da turma tinham ido ao clube. Zeca convidou João para jogar vídeo-game em sua casa. E não foi surpresa para João, lá estava a mãe dele com a do Zeca fofocando na beira da cerca, como de costume. Os guris estavam passando pela fofoca semanal quando João ouviu e parou.

- Dizem por aí que foi a Jurema. Aquela mendiga que passa aqui pela rua.
- Mas como pôde! Já não bastava a desgraça da vida dela, ainda tem que desgraçar a dos outros! Pobres bichanos.

Zeca cochichou com o amigo. - Viu só. Aquela velha não presta. Minha mãe disse que ela é bruxa e que é pra gente se cuidar, senão daqui uns dias ela nos pega.- advertiu ele, arregalando os olhos de fofoqueiro mirim. Os dois pararam e a “conversa” continuou.

- Pois é... dizem também que fez isso porque os bichanos estavam roubando sua os restos de comida dos lixos . . .

A mãe de Zeca percebeu que os guris estavam escutando e tratou de correr com os eles dali: -Já pra dentro. Mas que feio Zeca! Ouvindo a conversa dos mais velhos!

- Temos que dar um jeito nessa mulher. Sei lá....Não deixar mais ela passar, tirar ela daqui.
-Ah! Mas eu já disse...

Os guris foram jogar video-game. Afinal, a vida na rua feliz continuava, com ou sem os bichos envenenados, com ou sem a velha Jurema.

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